Seletividade da política de austeridade no texto da PEC Emergencial gera retrocesso fiscal

Por Débora Costa Ferreira1

A conclusão da votação, em primeiro turno, da Proposta de Emenda Constitucional nº 186, de 2019, foi comemorada pelo Governo Federal e até mesmo por formadores de opinião, mas traz escusa sérios riscos às instituições fiscais.

Conhecida como PEC Emergencial, a proposta estabelece, como contrapartida à prorrogação do auxílio emergencial, um conjunto de medidas de contenção fiscal para compensar o aumento de gasto pelo Governo Federal. A principal aposta consiste na instituição de ‘gatilhos’, que nada mais são do que restrições à geração ou ampliação de despesas com pessoal quando determinados limites forem alcançados pelos Poderes e órgãos.

Contudo, sob pretexto de conter gastos, a proposta abrirá a porteira para aumentos descontrolados de despesas obrigatórias de pessoal e até mesmo dos penduricalhos indenizatórios atualmente praticados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, que poderão escolher adotar ou não os ‘gatilhos’, já que para esses entes a regra constitucional será apenas facultativa, sem qualquer mecanismo de contingenciamento e controle desses gastos. Também está previsto o aumento do prazo de parcelamento dos precatórios desses entes.

O texto, tal como aprovado em primeiro turno, representa grave retrocesso fiscal na medida em que afasta a observância, obrigatória, das restrições de gasto do art. 8º da Lei Complementar nº 173, de 2020, as quais proíbem não apenas a concessão de reajustes salariais e a criação de novos cargos nas três esferas de governo até o encerramento de 2021, mas também colocam um freio no reajuste de bônus, abonos, verbas de representação e benefícios indenizatórios, praticados pelos Poderes subnacionais sem qualquer correspondência na União.

Chama atenção o fato de o tratamento diferenciado em relação aos servidores federais civis e militares ter sido apresentado na véspera do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, de três ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas para afastar a contenção de gasto com pessoal dos servidores estaduais, distritais e municipais, restringindo os efeitos do art. 8º da Lei Complementar nº 173, de 2020, apenas aos servidores federais, sem qualquer aspecto que justifique a segregação. O texto aprovado em primeiro turno rompe com a noção de federalismo, cujas finanças – pilar de sustentação – devem ser orientadas por normas gerais definidas pelo ente central.

Além de estabelecer distinções inaceitáveis entre servidores federais e estaduais/municipais durante calamidades públicas nacionais, o texto aprovado em primeiro turno cria, para União, uma série de ‘gatilhos’ visando conter despesas com pessoal, os quais serão acionados sempre que os limites de ‘Teto de Gasto’ apresentarem algum risco de não cumprimento.

Na prática, a proposta que pretende alterar a regra do ‘Teto de Gasto’ federal transfere unicamente para os servidores federais e membros de Poder da União o custo do desequilíbrio estrutural verificado no regime geral de previdência social (RGPS), que apresentou deficit de R$ 264 bilhões em 2020, gasto que vem pressionando, substancialmente, o ‘Teto de Gasto’ que vigorará até 2037.

Outra despesa que também pressiona o ‘Teto de Gasto’ adotado pela União são as honras de garantia oferecida às dívidas dos Estados e Municípios. A transferência de ônus fica evidente quando se verifica o volume de garantias concedidas em dívidas realizadas entes subnacionais que a União precisou honrar2 devido ao risco de inadimplência, o que passou de R$ 2,3 bilhões em 2016 para R$ 33,3 bilhões em janeiro de 2021 – um aumento de 1.347,83% –, gasto que se quer compensar impondo sacrifícios somente aos servidores federais. O montante é semelhante ao excedente de despesa de pessoal verificada nos Estados e no Distrito Federal em 2019, que chegou a R$ 36,1 bilhões, após uma escalada de 31,5% nos últimos 7 anos, valor suficiente para honrar as dívidas estaduais, sem que a União precisasse destinar recursos federais que poderiam ser aplicados em políticas públicas nacionais.

Ao todo, Estados e Municípios acumularam, em 2020, dívidas3 da ordem de R$ 1,1 trilhão, dos quais R$ 625,9 bilhões (57%) constituem dívidas diretas com a União e R$ 270,6 bilhões (24,6%) financiamentos obtidos com a garantia da União. Ou seja, cerca de 81% das dívidas dos entes subnacionais podem se transformar em risco fiscal para União se o conceito de austeridade fiscal presente na PEC Emergencial for seletivo.

E a seletividade não para por aí: a PEC prevê mais uma vinculação para militares, aumentando seu poder de apropriar maiores fatias do orçamento; restringe o alcance das reduções de benefícios fiscais inicialmente previsto e por aí vai.

Entidades4 que representam diversas carreiras federais alertam que política de austeridade aplicada unicamente aos servidores federais e membros de Poder como forma de resolver os problemas de concepção da regra do ‘Teto de Gasto’ arrisca precarizar as políticas públicas e a prestação de serviços essenciais para o cidadão.

A PEC Emergencial votada em primeiro turno expõe o paradoxo de restringir somente as despesas de pessoal da União – que se mantém em patamar estável em duas décadas –, enquanto o descontrole será incentivado para seletos grupos e nos entes subnacionais e no RGPS, cujas disfunções não foram devidamente enfrentadas na recente Reforma da Previdência. O equilíbrio entre sustentabilidade fiscal e atuação estatal em crises só pode funcionar se restrições e sacrifícios fiscais forem impostos sem seletividades.


[1] Débora Costa Ferreira é Auditora Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, Primeira Vice-Presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União | AUD-TCU, Doutoranda em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília (UnB) e Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). As opiniões da autora não representam, necessariamente, o posicionamento oficial do TCU.

[2] https://garantias.tesouro.gov.br/honras/

[3] https://garantias.tesouro.gov.br/dividas/ (dados de abril de 2020)

[4] Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AUD-TCU), Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe), Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (SINDIFISCO NACIONAL), Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis).


Fonte:
Comunicação AudTCU.

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